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Crônicas do Cotidiano - Miss Sarajevo

Baseado em fatos reais.
O pai tinha conseguido no mercado de pulgas duas batatas, duas bananas podres e um rabanete. A primeira reação da esposa foi de alivio, pois teriam o que comer aquele dia.

A filha mais nova se prontificou a pegar lenha no quintal, enquanto a mãe cortava os alimentos para o preparo da sopa. Neste meio tempo, o pai sentou-se no sofá da sala para ouvir as últimas noticias no rádio; Sarajevo estava sitiada e cercada por tropas inimigas há mais de três anos. Quem não conseguiu fugir, temia pelas incertezas da vida.

Onde está Svetlana? perguntou o pai, a respeito da filha mais velha.

No quarto, ouvindo música. respondeu a mãe.

Svetlana! Svetlana!

Svetlana não ouviu os gritos do pai. Estava com o som ligado no último volume, tinha vestido sua melhor roupa, calçado botas, passado batom, cantava e representava feito uma pop star internacional.

Svetlana! gritou a mãe.

Essa menina precisa parar de sonhar. resmungou o pai contrariado.

Como Svetlana não respondeu, a filha mais nova foi até o quarto chamá-la para almoçar.

À mesa, enquanto mergulhava um pedaço de pão amanhecido na sopa rala, o pai conversava com a esposa sobre a possibilidade de recomeçarem a vida em outro lugar. Quem sabe na Argentina, onde uma grande comunidade Iugoslava havia se constituiu, depois da segunda grande guerra mundial. Mas para isso precisavam estar vivos.

Svetlana mal tocou no prato de sopa. Fazia pose e gestos. Talvez não tivesse fome ou a sopa não tivesse o tempero da vida que pretendia levar como cantora internacional.

Não desperdice comida, filha! pronunciou indistintamente o pai.

Svetlana não respondeu.

A mãe se levantou para ir até a cozinha, na bandeja trazia as duas bananas com todo cuidado para não desmanchá-las, cortou a menor com uma colher e dividiu com o marido. Deixando a mais suculenta para que as filhas repartissem.

Eu não quero! disse Svetlana, com cara de poucos amigos

Coma, filha. disse a mãe.

Já disse que não quero! E empurrou a bandeja para o centro da mesa.

O que é isso, Svetlana? Você acha está fácil conseguir comida? falou o pai rispidamente.

Essa banana está podre!

Agradeça por ainda ter o que comer! respondeu o pai.

Eu tenho nojo de comer isso!

O pai olhou com fúria para a menina.

Coma, eu estou mandando! e tirou a cinta da calça em tom de ameaça.

Coma, você! respondeu a filha, jogando a bandeja e a banana já desmanchada em direção ao pai.

Aquela foi à última vez que Svetlana queixou-se da comida. À noite, chorando baixinho enquanto a mãe fazia compressas nas suas costas muitas vezes surradas e tatuadas pela cinta do pai, a rádio que tanto gostava de escutar, tocou em tom de protesto, Miss Saravejo do U2:

Is there a time for kohl and lipstick
A time for cutting hair...
Is there a time for high street shopping
To find the right dress to wear
Here she comes

Capítulo de Eclesiastes que inspirou o Bono, como ele mesmo disse: " TUDO tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; Tempo de derrubar, e tempo de edificar; Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar; Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar; Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora; Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; " (Eclesiastes 3:1-7)




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